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ACESSE O RELATÓRIO COMIBAM 2023

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Recuperando o dever da Grande Comissão

Por Samuel E. Masters, 2022

Mais de duzentos anos depois de sua publicação, a Pesquisa de William Carey continua tendo poder para motivar a obra missionária. Esse poder não provém de alguma genialidade, pois Carey se baseou em uma argumentação simples, que ganha força justamente por meio de sua simplicidade e franqueza. O argumento se resume no título: Uma pesquisa sobre a obrigação dos cristãos de utilizarem meios para a conversão dos pagãos

A Pesquisa marcou o início do movimento moderno de missões e também da missiologia como disciplina acadêmica. Carey realizou uma revisão dos esforços missionários anteriores, que constituem “a primeira tentativa moderna de fazer uma lista dos missionários do mundo. Os dados não estavam facilmente a mão, já que ninguém mais estudava naquela época esse aspecto da história”.1 

Uma comissão vigente 

Dentro da denominação batista, à qual William Carey pertencia, se realizaram debates de grande importância sobre a oferta gratuita do evangelho. Carey desejava superar aquelas discussões teológicas para argumentar a favor de levar o evangelho a terras estrangeiras. Desejava dar passos concretos. 

Carey entendia que a comissão apostólica deve ser aplicada no sentido mais amplo, tanto cronológica como geograficamente. Isso quer dizer que a Grande Comissão requer a pregação do evangelho a toda criatura, em todo lugar, e continua vigente até a segunda vinda de Cristo. 

Carey questionava o ponto de vista hiper calvinista de que, se Deus tem a intenção de salvar os pagãos, de um modo ou de outro os levaria ao evangelho ou o evangelho chegaria a eles. Essa forma de pensar ainda era muito forte entre alguns batistas. Contudo, a soberania de Deus não deve converter-se em uma desculpa para desobedecer ao mandato de Deus. 

O ataque de Carey estava dirigido especificamente contra a opinião de que a Grande Comissão havia expirado com a morte dos apóstolos. Assim descreve o pensamento de sua época:  

Parece existir a opinião na mente de alguns de que, devido a que os apóstolos eram oficiais extraordinários e não tiveram sucessores apropriados e devido a que muitas coisas que eram corretas para eles seriam totalmente injustificáveis para nós, portanto, não pode ser imediatamente obrigatório para nós executar a Grande Comissão.2 

Carey respondia dizendo que se a Grande Comissão se limitava aos apóstolos então também se limitava o mandato de batizar e a promessa de Sua presença até o fim do mundo. Portanto, a Grande Comissão só podia ser substituída por uma revelação adicional que, claro, não existia. 

Na ausência de uma “contra revelação”, a única coisa que poderia fazer com que a Comissão não fosse de cumprimento obrigatório (vinculante) seria a impossibilidade física de colocá-la em execução. Por exemplo, não era obrigação do apóstolo Paulo pregar a Cristo aos habitantes da ilha da Jamaica, pois não conhecia tal lugar, nem tinha os meios para chegar lá. 

Isso nos leva ao coração do pensamento de Carey. Sua missiologia girava em torno da interação entre três conceitos: o dever, o uso de meios e o papel da providência divina. Aqui abordamos o primeiro conceito, deixando o resto para entregas seguintes.  

A motivação missionária 

O que nos motiva a empreender o caminho sacrificial das missões? 

Em geral, se fala de duas motivações. Para alguns prevalece a glória de Deus; para outros, a compaixão pelos perdidos. Carey reconheceu a importância de ambas as motivações, mas colocou sua ênfase em uma síntese: o dever. 

Alguns teólogos sugerem que a motivação principal é o aumento da glória de Deus. Carey refere-se a isso quando afirma que o esforço missionário é a resposta adequada ao mandato do Senhor de que Seus discípulos “orem para que venha Seu reino e se faça Sua vontade na terra como no céu”.3 

Anos mais tarde, faria uma declaração mais explícita em uma carta onde descreve a resistência ao evangelho entre os brâmanes da Índia:  

Não tenho nenhuma dúvida de que, ao final, o Deus de toda graça exercerá Seu poder onipotente e reivindicará Sua autoridade e estabelecerá a glória de Seu próprio nome nesse miserável país; nosso trabalho pode ser apenas como o dos pioneiros que preparam o caminho, mas a verdade prevalecerá (ênfase acrescentado).4 

Em 1821 escreveu a seu filho Jabez, que servia como missionário em outra província da Índia. Carey o motiva a pensar na glória de Deus em meio às adversidades:  

Sei que as dificuldades dos primeiros que se comprometem com essa obra são grandes, e sinto muito que você se encontre só nesse vasto terreno, mas estou seguro de que o Senhor pode dar-te forças segundo seu dia e que sustentará a todos os que, com a vista posta em Sua glória, se comprometem com Sua gloriosa obra (ênfase acrescentado).5 

A importância da compaixão 

Carey também via a compaixão como um fator importante para realizar o esforço missionário. Em sua Pesquisa apelava aos “sentimentos de humanidade”6. Sustentava que a motivação missionária devia derivar da consideração do estado de indigência e de não civilização da maior parte da humanidade. 

Os relatos da “ignorância ou da crueldade da humanidade devem suscitar nossa compaixão e nos provocar a colaborar com a Providência na busca de seu bem eterno”7. Nós, que sustentamos uma teologia reformada, não deveríamos ter vergonha de admitir que a compaixão nos motiva. Ao sentir dor pelos que se perdem, imitamos a nosso Senhor, que chorou pela incredulidade de Jerusalém (Lc 19:41). 

A motivação suprema do dever 

No dever encontramos o argumento teológico supremo para o esforço missionário. A glória de Deus proporciona uma motivação legítima para as missões, assim como a compaixão pelas almas das pessoas perdidas. Mas as palavras de louvor a Deus ou a preocupação pelos perdidos serão inúteis se não forem acompanhadas de obediência ativa e concreta à Grande Comissão. 

Podemos entender esse argumento de dever como uma extensão do debate teológico que recuperou a livre oferta do evangelho. O hiper calvinismo havia perdido de vista a compaixão devido a seus excessos racionalistas. Andrew Fuller e outros homens entenderam que o miolo do problema era uma falta de clareza quanto ao que as Escrituras demandam da igreja. No Novo Testamento se encontram mandamentos claros sobre a pregação do evangelho e o arrependimento dos pecadores. 

A glória de Deus é o fim supremo de tudo o que existe e a Grande Comissão serve como uma espécie de princípio regulador: se queremos glorificar a Deus devemos fazê-lo da maneira que Ele nos indica, o que inclui anunciar Suas virtudes às nações. Se enchemos nossa boca de louvores, mas não nos esforçamos nas missões, nos tornamos como os que dizem “Senhor, Senhor” e não fazem o que Ele disse (Lc 6:46). 

Nas palavras de William Carey:

“Se você quer acelerar o Reino, saia para fazer você mesmo. Somente a obediência racionaliza a oração; somente a missão pode redimir suas intercessões de uma falta de sinceridade” 8

1 S. Pearce Carey, William Carey (Londres: Wakeman Trust, 2008), 57 
2 William Carey, An Enquiry into the Obligations of Christians, to Use Means for the Conversion of the Heathens(Londres: Kingsgate Press, 1961), 8. 
3 Ibid., 3 
4 William Carey, Serampore Letters: Being the Unpublished Correspondence of William Carey and Others with John Williams, 1800-1816 (New York: G. P. Putnam’s Sons, 1892), 62. 
5 Sunil Kumar Chatterjee, William Carey and Serampore (Ghosh Pub. Concern, 1984), 35–36. 
6 Carey, An Enquiry, 31. 
7 Ibid., 95 
8 Samuel Hugh Moffett, A History of Christianity in Asia (Maryknoll, New York: Orbis), 253